Como todo desejo de criação, a ideia de realizarmos um espetáculo a partir das Crônicas de Nuestra América, de Boal, nasceu de um encontro. Em março de 2011, após sermos apresentados por Cecilia Boal, produzimos juntos uma homenagem aos 80 anos de Augusto Boal, realizada no Oi Futuro Flamengo. Naquele momento, na correria da produção, selou-se o nosso encontro e o início de uma amizade que, na verdade, parecia já ser de muito tempo. Ficou a vontade de prosseguir junto. Entre muitas ideias regadas a cafés ou vinhos, Cecilia nos lembrou das Crônicas. E apareceu, em nós três, o desejo de contar em cena estas histórias escritas entre 1971 e 1976, na fase do exílio latino-americano do dramaturgo, quando morava em Buenos Aires, e bem no momento em que transformava sua visão de arte política para criar o Teatro do Oprimido. Se naquela época a publicação regular destas crônicas no jornal O PASQUIM ajudou a reatar o vínculo de Boal com o público brasileiro, atualmente, o interesse destas pequenas historias latino-americanas reflete uma tendência do teatro contemporâneo de trazer a política do cotidiano para a arte e vice-versa, como caminho de transformação social.
Na nuestra América de Boal, cada tipo comum esconde uma humanidade sempre complexa, atrelada a um sistema onde relações aparentemente banais revelam a chance de nos perguntarmos sobre as causas que desorientam o ser humano, e o levam a oprimir o outro e a si próprio.
Montar as Crônicas de Nuestra América em pleno 2014, é topar de novo e sempre com um continente em eterno e camuflado estado de exceção: “o continente ensanguentado", como dizia Boal. Desde aquele primeiro encontro até aqui, a rede de afetos foi se expandindo e o projeto foi tomando corpo. Nossa equipe chega à estreia formada por artistas atuantes politicamente e acostumados com o jogo da criação dramatúrgica em cena. Única maneira coerente que encontramos para embarcar no universo das Crônicas de Nuestra América, e assim, experimentar novas possibilidades para a questão da identidade na América Latina hoje, tentando recriar a cada dia, no palco e na vida, a memória esfacelada do nosso continente, que ainda pulsa dentro de nós.
Clara de Andrade
Gustavo Guenzburger
Luiz Boal